A EPOPEIA DO OVO E A MIGRAÇÃO DOS SÍMBOLOS NA PINTURA DE GABRIEL  GARCIA

Maria João Fernandes

 

“Será possível dizer onde pára o consciente e onde começa o inconsciente ? ”

Rudolf  Wittkower, A Migração dos Símbolos.

 

Gabriel Garcia (n.1977) é um dos nomes mais interessantes da sua geração pela originalidade e modernidade das suas propostas inserindo-se numa linha pós-modernista que reúne as mais diversas e assumidas influências, da grande pintura (Courbet) aos Mestres do século XX (Ensor, Giorgio de Chirico, Edward Hopper e Neo Rauch), à literatura (José Cardoso Pires) incluindo os contos infantis, ao cinema, às revistas e à banda desenhada, sem esquecer a componente fortemente narrativa do seu trabalho em relação com a estética contemporânea da figuração narrativa, mas dela se demarcando por um imaginário muito próprio.

A filiação em algumas das vertentes fundadoras da arte do século XX, no expressionismo, na pintura metafísica, no surrealismo ou na figuração narrativa, tanto como nas mitologias da sociedade de consumo centradas no poder das imagens que reproduzem uma realidade virtual, dá à sua obra um estatuto particular, entre a memória da pintura, uma deambulação onírica e o espaço de uma realidade tão presente como fantasmática.

O seu universo perturbador e inocente oferece-nos um mundo fragmentado e compósito, de imagens ancoradas, navios da imaginação em demanda do porto de todas as miragens, intemporal paraíso perdido na infância, tempo das fábulas e do maravilhoso que ressuscita na sua pintura.

Na sua obra anterior o movimento de formas teatrais e insólitas, espécie de circo dos aspetos, nega uma visão tradicional. A sua liga-se a uma narratividade dos sonhos acordados, com a inversão das escalas habituais, no jogo entre o minúsculo e o grandioso sem correspondência com a realidade. Figuras que emergem da história mais arcaica ou mais recente, do universo das fábulas e dos mitos, outras do cenário citadino, numa espécie de deambulação grotesca e sem rumo. Uma mistura do humano e do animal, dos vários reinos, com mecanismos inventados que permitem o seu domínio, na travessia do espelho imaginário da arte, ao encontro de Alice, errando nos meandros das fantasias, como Pinóquio.

O pintor reivindica a sua condição de ilhéu, como Vitorino Nemésio ou António Dacosta de quem herdou a melancolia e o arrepio metafísico, e ao mesmo tempo a lição dos Mestres da Pintura que revisita, tendo hoje eleito Hieronymus Bosch (1450-1516) para um diálogo que alimenta os símbolos da sua própria pintura com as ressonâncias dos arquétipos universais presentes na obra do génio da pintura holandesa e mundial.

Bosch era já para Gabriel Garcia uma referência em versão maravilhosa e lúdica para consumo do imaginário contemporâneo. Fantasias de toda uma civilização de que se tornou intérprete, sem rumo e sem sentido, a não ser a perplexidade de um movimento que ignora um centro, a fonte de toda a energia, o núcleo solar da Vida.

Na fabulosa migração de símbolos e de imagens que toda a grande pintura é, o artista retoma com esta exposição um motivo emblemático de Bosch e um motivo simbólico universal, o ovo, que à distância de mais de cinco séculos faz a relação entre a pintura flamenga da transição para o Renascimento e o imaginário contemporâneo. Símbolo por excelência da criação, o ovo surge em famosos quadros do artista holandês como “A Tentação de Santo Antão” ou o “Juízo Final” em cenários caóticos e dramáticos, associados à coletiva catarse de fantasmas e medos ancestrais e ao mesmo tempo contemporâneos do autor, uma visão crítica da realidade que não exclui a celebração das pulsões da vida, numa única e magistral totalização só antes atingida na poesia de Dante.

Um elo entre a história e o mito, a realidade e o arquétipo, o visível e o invisível, uma realidade física e uma realidade metafísica, está bem patente em toda a obra de Bosch e em particular no tríptico “Visões do Além”. Sob o signo do Paraíso num quadro que poderia ser o ícone da história da arte do Ocidente, “O Jardim das Delícias” e também no “Carro de Feno” ou no “Juízo Final”. O paraíso adquire aí o valor de uma metáfora fundadora da civilização, sua chave, seu começo e seu termo remetendo ainda para o início.

Tal como Dante, Bosch atingiu um cume da arte da sua época transmitindo uma visionária interpretação não apenas do seu tempo, mas de toda a história da humanidade cuja crueldade e absurdo denuncia em imagens de uma avassaladora atualidade e também de uma acutilante ironia e de uma secreta ternura. A “Nave dos Loucos”, um título de grande fortuna no século XX (romance de Katherine Anne Porter, filme de Stanley Kramer) é o navio que transporta toda a condição humana desde tempos imemoriais, de destino incerto. Um destino que hoje ganha na pintura do jovem Gabriel Garcia o sentido novo de uma aventura envolvendo uma contemporaneidade de que todos somos personagens e testemunhas impotentes dos mesmos desastres a que a pintura de Bosch deu intemporal expressão.

Gabriel Garcia já nos habituara nas suas exposições anteriores, em particular na sua notável “Walkthrough a Story” ao extraordinário fôlego do seu caudal de imagens e à mestria de um talento capaz de fazer a ponte entre o maravilhoso das histórias de fadas e dos contos infantis e os mitos e as realidades dramáticas de toda uma civilização cuja história nos conta desde os gigantes da Ilha da Páscoa até às terríveis ameaças da era tecnológica. O seu diálogo com Bosch, antepassado do Surrealismo, é hoje assumido com especial brilho, transportando para a atualidade as suas imagens sem as mimetizar, mas transfigurando-as com grande originalidade nas criaturas do seu próprio universo em cenários da sua invenção (Imagens de Antão), para nos oferecer uma visão da contemporaneidade, ao mesmo tempo rigorosa e visionária e alimentada pela arquetipal mensagem dos símbolos, igualmente presente na obra do seu antepassado mais velho.

Com que divertida e lisonjeada ternura Bosch assistiria hoje a esta espantosa viagem que um dos símbolos da sua pintura realizou através dos séculos para chegar no navio do tempo e da irrisão humana a este universo (“Epopeia do Ovo”) de um jovem artista que nos espanta pela sua ousadia e perspicácia. Um universo onde lado a lado convivem imagens separadas por vários séculos, como se essa distância não fosse mais do que o natural fermento de um novo “Jardim das Delícias” que esta pintura não anuncia aliás, mas cuja ausência parece notar (“Um Jardim sem Delícias” e se converte no emblema de uma melancolia e de uma desesperança que afinal caracterizam o nosso tempo.

“A Epifania do Ovo” de Gabriel Garcia evoca na forma do “ovo-árvore” esta célebre obra de Bosch, e situa-nos no centro de uma visão apocalíptica da civilização, simbolicamente em queda na figura da torre que se desmorona, entre o nascimento e a morte (simbolizados justamente pelo ovo e pelo túmulo) separados pela figura, que poderia ser salvífica, de um jovem personagem andrógino.

A criança representada nos quadros “A Epopeia do Ovo” e “O Sermão”, ou o adolescente, são aliás os índices de uma mediação possível entre o Caos contemporâneo e as raízes míticas do conhecimento perdidas na infância da humanidade ou na nossa infância. Criança solitária, de olhar perdido, vazio ou extático (em “O Rapaz Árvore” ou “Um Olhar com Cruz às Costas”) mas onde reside afinal essa esquecida comunicação com o mundo onírico e maravilhoso de que ela é ainda a única guardiã. Crianças ou adolescentes em jogos de magia e prestidigitação (“Entre os Prestidigitadores”).

É ainda o jovem, mediador de mundos e transmissor de um conhecimento antigo, a personagem central do quadro de Gabriel Garcia “Os Peixes também têm boca” num cenário que recorda esta imagem de Bosch (“Jardim das Delícias”, “Tentação de Santo Antão”) unindo o mundo terrestre e o mundo aquático, possível metáfora da relação entre consciente e inconsciente na origem de toda a arte, e desta também. Mas o peixe não é aqui o emblema do nascimento, da revelação, da vida e da fecundidade com um sentido espiritual, pólo essencial do símbolo, mas conota, tal como na pintura de Bosch, o mundo da indistinção, da indiferenciação e da dispersão bem patentes no olhar sombrio da personagem, bem como na hipnótica e assustadora presença dos seus companheiros do reino animal.

Na fantástica migração de formas e de símbolos a que temos vindo a fazer alusão, mantém-se o sentido errático da viagem, uma epopeia onde as personagens mudaram de visual, conservando a incapacidade ou a inapetência para viverem sem reservas a plenitude da condição humana, vocacionada para a exaltação das mágicas forças da vida e do amor, ainda assim invocadas sublime e magnificamente na obra de Bosch.

Na ousadia do seu extraordinário diálogo cumprido com a obra de Bosch, Gabriel Garcia conserva o essencial do conteúdo dos símbolos, sobretudo o do ovo que dá o título a esta mostra, mas com um olhar bem contemporâneo que retira a mensagem salvífica que lhes pertence e os justifica. No extraordinário quadro “O Purgatório” que retoma o corvo, emblemático na pintura de um mestre da figuração narrativa internacional: Velickovic, o ovo quebrado e vazio aponta o inverso do sentido cosmogónico deste símbolo, tal como o ambiente de imagens noturnas e a labiríntica dispersão sugerida pelo novelo negro que uma das personagens desdobra, Parca (em figura significativamente masculina) de um destino mortal que se adivinha e se avizinha.

Arquiteturas frias e metálicas, uma terra soturna e meio calcinada, uma sugestão bélica (nas figuras dos soldados de insólitos capacetes), tudo nos remete para um imaginário apocalíptico onde paira uma vaga ameaça nuclear. E em destaque uma vez mais a figura de um jovem ou de um anjo sem asas, em pura contemplação ou em silenciosa oração apelando talvez às ausentes forças da Vida.

Jogando com as miniaturizações e as inversões de escala tão características do imaginário e do seu trabalho, Gabriel Garcia situa verdadeiramente no universo da infância e da adolescência (“Os Prestidigitadores”), uma componente lúdica e instintiva, mais evidentes nestas fases da existência humana, capaz de negar a melancolia contemporânea e de deter a fatal marcha para o vazio e o absurdo sugerida na sua pintura, onde não deixa de nos perturbar a ausência de uma figura verdadeiramente feminina que poderia representar o caminho salvífico dos símbolos, inspirador da imagem do Éden, na obra de Bosch.

Anima, pólo feminino e alquímico de uma transmutação e de uma transfiguração de sentido espiritual que poderiam resgatar a matéria do seu peso e das suas trevas, tal como nos ocorre pensar a propósito da obra póstuma de Duchamp, aquela cujo sentido até hoje não foi decifrado. A mulher no drama da sua negação e violentação em Duchamp e na sua ausência, na pintura de Gabriel Garcia, retrato soberbo de um momento, de uma etapa da nossa vivência contemporânea, onde se situa e nos situamos, apesar de tudo na expectativa de um nascimento ou de um renascimento sempre anunciados pelo ovo.

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