Por aí

Texto de Miguel Matos 2010

… À semelhança de cada vez menos artistas, Gabriel Garcia aposta a sua pintura na narratividade, baseada na figuração e na representação. Fá-lo, dentro de uma técnica de grande tradição e história, no contexto de sonhos que se confundem com a realidade. As suas pinturas recentes pegam no contexto social e psicológico actual e transportam os seus elementos para uma terra incerta, plantada na linha que divide a realidade da fantasia.

O trabalho de Gabriel Garcia aproxima-se esteticamente do surrealismo aqui e além, mas afasta-se gradualmente de tal movimento ao nível ideológico. Não é uma pintura só de sonhos nem é uma arte politizada. No entanto, o pintor não se coíbe de deixar um comentário implícito e insinuado sobre a mentalidade portuguesa e as idiossincrasias de quem vive há séculos a construir castelos de areia. Assim, os contos que Gabriel nos apresenta contêm personagens e paisagens que não identificamos, mas que têm connosco, os portugueses, uma coisa em comum: um sentimento de caminho incerto, errante. Um quotidiano a olhar para aquilo que não se tem nem se é. Talvez daí a presença da saudade, uma visão da vida afastada do pragmatismo e uma passividade que ainda se revela na expectativa de um mítico D. Sebastião como o messias que nos virá salvar.

Há nestas pinturas e desenhos um sentimento de vazio, ainda parente da tão portuguesa saudade que, segundo António José Saraiva é “um estar em dois tempos e em dois sítios ao mesmo tempo”[1], um sentimento de passividade, uma recusa em aceitar o passado como pretérito e, por outro lado, uma vivência alheada no presente. Portugal ainda é um ilhéu. Vive isolado e fala para dentro. As mulheres são Marias como a santa e os homens andam devagar como numa procissão.

Estas personagens, em paisagens de ficção, habitam edifícios feitos de ar. Buscam não se sabe o quê e vão não se sabe onde. Estão “por aí”, vivem em “lugares indeterminados, trajectos aleatórios, sem direcção nem fronteiras, mas bem precisos para os portugueses”, como escreveu José Gil[2]. O “por aí” de que fala este filósofo é esse “território de deambulação” – física e mental – ao mesmo tempo livre e enclausurado. Em ruínas, os castelos no ar dentro dos quais vivemos têm como diáfanos alicerces uma memória desfigurada da história. Talvez pela memória curta, a paisagem perdeu os referentes e misturou-se com as construções mentais. São como paisagens psicológicas, aquelas que servem de fundo às pinturas desta série. Talvez seja a paisagem a que Eric Corne se referia quando escreveu acerca da presença desta na arte contemporânea: “é antes a perturbação da paisagem, a sua erosão e a sua moldagem pela actividade humana (…)”[3]. Neste cenário natural em que se movem personagens e se desfazem casas e memórias, há um elemento expressionista, adequado a esta sensação de degradação. A tinta escorre sobre a tela, como que em metáfora da decadência que as imagens sugerem. Exemplo disto é a tela desabitada em que a personagem é uma casa, também ela vazia e que ostenta em frente a placa com o sinal “Vende-se”. No entanto, a paleta usada por Gabriel denota uma atitude de incontrolável positivismo de quem está à espera de ver o futuro chegar.

 

  • Como estás?
  • Vai-se andando
  • Por onde vais?
  • Por aí…

 

[1]    SARAIVA, António José, A Cultura em Portugal – Teoria e História, Livro I, 2ª edição, Bertrand Editora, Lisboa, 1985

[2]    GIL, José, Portugal, Hoje – O Medo de Existir, Relógio D’Água, Lisboa, 2004

[3]    CORNE, Eric, Paisagens Oblíquas, Museu Colecção Berardo, Lisboa, 2009