Moment Stills

Like a bird on the wire,
like a drunk in a midnight choir
I have tried in my way to be free.
Like a worm on a hook,
like a knight from some old fashioned book
I have saved all my ribbons for thee.
If I, if I have been unkind,
I hope that you can just let it go by.
If I, if I have been untrue
I hope you know it was never to you.

Like a baby, stillborn,
like a beast with his horn
I have torn everyone who reached out for me.
But I swear by this song
and by all that I have done wrong
I will make it all up to thee.
I saw a beggar leaning on his wooden crutch,
he said to me, “You must not ask for so much.”
And a pretty woman leaning in her darkened door,
she cried to me, “Hey, why not ask for more?”
Leonard Cohen[1]

 

“Não useis a epígrafe, porque mata o mistério da obra!”

Adli[2]

 

A obra de arte é um processo. Tem sido esse o trabalho de Gabriel Garcia. “Cavando, investigando e acreditando acima de tudo no processo da própria Pintura. Este percurso teve um início adjetivado por narrativas fantásticas, fábulas irónicas, duras e burlescas, carregadas de personagens escarnentas mas não merecedoras de desprezo”[3]. Foi o tempo do conto e da interferência de Edgar Allan Poe, e a sua coleção Tales of the Grotesque and Arabesque (traduzido para o francês como Histoires Extraordinaires e para o português como Histórias Extraordinárias), apontada como um marco da literatura norte-americana, fez nascer a exposição com o nome “Era uma vez uma coisa qualquer…” onde a instalação de vários desenhos e objectos dentro de um quarto construído para o efeito nos fazia entrar no mundo maravilhoso do conto. Desta interpretação do mundo através da transformação nasceram exposições divertidas que provocavam emoções diferentes, tantas quanto o estado de espirito do observador o permitia. De seguida os cenários foram-se alterando, “agora as histórias aprumam fronteiras na realidade”, na exposição “Por Aí” de 2011 a cinematografia de Hitchcok, está patente com Psycho e The Birds.

Em Moment Still’s a inquietude pela narrativa continua mas agora mais despojada, servindo-se das memórias e vivências diárias. Telas como Blind lunch, Conversations, Empty day, Empty nest holidays, Empty stills, Empty walls, Outside my window, ou Somewhere that I love, onde está presente algum romantismo e alguma influência da pintura contemplativa de Gaspar David Frederich, na utilização da paisagem como fundo e da figura solitária, ao contrário deste, estes elementos estão presentes na pintura, porém, de forma metafórica mas factual na solidão urbana e ficcionada na paralisação da figura humana como se de um sonho se tratasse.

Hooper reside nas paisagens urbanas, desertas, melancólicas e iluminadas por uma luz estranha. “Os edifícios, geralmente enormes e vazios, assumem um aspecto inquietante e a cena parece ser dominada por um silêncio perturbador. A expressão de solidão, vazio, desolação e estagnação da vida humana, exposto pelas figuras anônimas que jamais se comunicam. Pinturas que evocam silêncio, reserva, com um tratamento suave, exercem frequentemente um forte impacto psicológico.”[4] David Lynch com The Straight Story ou Bleu Velvet e Wang Kar Wai com My Blueberry Nights podem servir-nos de gatilho para os trabalhos em papel, destacando as pinturas: Green Border, Empty Games, Reunion, Her Skin, Round table, Show is over.

Também da literatura recente de Orham Pamuk títulos como: “O Romancista Ingénuo e o Sentimental”; “O Museu da Inocência”; “O Livro Negro”- traduzido em português com o título de “Os jardins da Memória” ,“O Meu Nome é Vermelho”;” O Castelo Branco”; e “A Casa do Silêncio” e poderiam ser títulos apropriados para obras que Gabriel Garcia tem vindo a executar ao longo da sua carreira ou mesmo desta exposição. Do livro “Jardins da Memória” de que faz parte integrante a epigrafe deste texto saliento este que nos apoia na leitura da exposição presente: […] “O que ele, pelo seu lado, teria querido era que se gravasse na sua memória a imagem da jovem mulher com um outro rosto, com uma outra história. […]

Na ponte, que ia atravessando a pé, foi invadido pela impressão de estar prestes a descobrir, entre a multidão do domingo, um segredo que buscava. Como num sonho, sentia vagamente que essa expectativa não passava de um erro, e contudo, as duas verdades contradiziam-se na cabeça dele sem o perturbarem. Via soldados de licença, pescadores à linha, famílias numerosas que andavam muito depressa para não perderem o barco. Nada sabiam, todos eles, mas todos eles viviam no segredo que Galip se esforçava por resolver. Quando Galip o conseguisse, este pai de família que saíra para uma visita, com um bebé nos braços e um filho calçado com ténis ao lado, esta mãe com a filha no autocarro, as duas com o cabelo preso no alto da cabeça, poderiam então dar-se conta da realidade que havia tantos anos determinava tão profundamente as suas vidas.

No passeio do Mar de Mármara, Galip avançava observando de perto os transeuntes: os seus rostos pareciam iluminar-se por breve instante, perder a sua expressão gasta, esgotada, envelhecida por anos e mais anos. Lançavam um rápido olhar ao homem que se aproximava deles com um ar tão resoluto, e Galip fitava-os nos olhos, olhava-os com insistência, como que para lhes ler no rosto o seu segredo.

Os sobretudos e casacos da maior parte deles estavam velhos, coçados e baços. O universo era para eles tão normal como o passeio de baixo dos seus pés; e contudo não estavam solidamente implantados neste mundo. Estavam todos eles, pensativos, distraídos, mas, à menor provocação, uma curiosidade enterrada no mais fundo da sua memória lembrava-lhes um segredo escondido no seu passado e surgis por um breve instante na máscara inteiriçada dos seus rostos. «Gostava tanto de os perturbar», disse Galip para consigo, «de lhes contar a história do príncipe herdeiro!» A história em que acabava de pensar era nova, mas tinha a impressão de a ter ele próprio vivido, de a recordar. […] O que ele precisava de descobrir, de decifrar, eram de facto essas combinações, esses pequenos jogos, o sentido secreto da vida, mas, à excepção de si próprio, ninguém mais parecia interessar-se por isso. Embora todos estivessem enterrados até ao pescoço num segredo que tinham perdido havia muito! […]”[5]

Despoletar o sentir universal do Homem as circunstâncias das suas vivências e as suas memórias reais ou construídas é o trabalho intelectual para que Gabriel Garcia nos convoca. Ao contrário de Hemingway em For Whom the Bell Tolls um homem é uma “ilha”, e no caso de Gabriel Garcia, nascido junto dos velhos baleeiros companheiros de pesca de seu avô onde se aprendia não só a arte da pesca mas essencialmente a arte da vida. A invenção de mundos desconhecidos, através das histórias ouvidas desses homens que combatiam os elementos Naturais para a sobrevivência dos seus entes queridos e de eles próprios “armavam” um arquipélago. No dia que viu o retrato de Cervantes pintado por seu tio, fez sentido, começar a construir cabanas e dragões com pregos e martelos.

É em S. Miguel que essa “ilha” concebe que se vai deslocar do Oceano para o Continente. A partir daí cria das memórias fantásticas e fantasiadas desse saber aprendido com os velhos armadores baleeiros, a obra, que será a reconciliação com as raízes e com a ilha num processo onde a ironia, o desejo o inesperado e o maravilhoso se mantém, que tem vindo a ser aplicado e está bem visível nesta exposição. Nunca a obra de Gabriel Garcia mostrou tão claramente o isolamento, a noção de estarmos acompanhados mas sós e a necessidade de nos tornarmos um Arquipélago ou até um Continente.

 

Isabel Vaz Lopes

Lisboa, 15 de Fevereiro de 2016

[1] Leonard Coheen, Bird on the Wire 1979.

[2] Título original Orham Pamuk; Editorial Presença; Tradução de Miguel Serras Pereira; Os Jardins da Memória, pág.11.

[3] Gabriel Garcia, Lisboa, 2016.

[4] Wikipédia Livre – Edward Hooper.

[5] Título original, Orham Pamuk; Editorial Presença; Tradução de Miguel Serras Pereira; Os Jardins da Memória, págs 218, 219.

 

A EPOPEIA DO OVO E A MIGRAÇÃO DOS SÍMBOLOS NA PINTURA DE GABRIEL  GARCIA

Maria João Fernandes

 

“Será possível dizer onde pára o consciente e onde começa o inconsciente ? ”

Rudolf  Wittkower, A Migração dos Símbolos.

 

Gabriel Garcia (n.1977) é um dos nomes mais interessantes da sua geração pela originalidade e modernidade das suas propostas inserindo-se numa linha pós-modernista que reúne as mais diversas e assumidas influências, da grande pintura (Courbet) aos Mestres do século XX (Ensor, Giorgio de Chirico, Edward Hopper e Neo Rauch), à literatura (José Cardoso Pires) incluindo os contos infantis, ao cinema, às revistas e à banda desenhada, sem esquecer a componente fortemente narrativa do seu trabalho em relação com a estética contemporânea da figuração narrativa, mas dela se demarcando por um imaginário muito próprio.

A filiação em algumas das vertentes fundadoras da arte do século XX, no expressionismo, na pintura metafísica, no surrealismo ou na figuração narrativa, tanto como nas mitologias da sociedade de consumo centradas no poder das imagens que reproduzem uma realidade virtual, dá à sua obra um estatuto particular, entre a memória da pintura, uma deambulação onírica e o espaço de uma realidade tão presente como fantasmática.

O seu universo perturbador e inocente oferece-nos um mundo fragmentado e compósito, de imagens ancoradas, navios da imaginação em demanda do porto de todas as miragens, intemporal paraíso perdido na infância, tempo das fábulas e do maravilhoso que ressuscita na sua pintura.

Na sua obra anterior o movimento de formas teatrais e insólitas, espécie de circo dos aspetos, nega uma visão tradicional. A sua liga-se a uma narratividade dos sonhos acordados, com a inversão das escalas habituais, no jogo entre o minúsculo e o grandioso sem correspondência com a realidade. Figuras que emergem da história mais arcaica ou mais recente, do universo das fábulas e dos mitos, outras do cenário citadino, numa espécie de deambulação grotesca e sem rumo. Uma mistura do humano e do animal, dos vários reinos, com mecanismos inventados que permitem o seu domínio, na travessia do espelho imaginário da arte, ao encontro de Alice, errando nos meandros das fantasias, como Pinóquio.

O pintor reivindica a sua condição de ilhéu, como Vitorino Nemésio ou António Dacosta de quem herdou a melancolia e o arrepio metafísico, e ao mesmo tempo a lição dos Mestres da Pintura que revisita, tendo hoje eleito Hieronymus Bosch (1450-1516) para um diálogo que alimenta os símbolos da sua própria pintura com as ressonâncias dos arquétipos universais presentes na obra do génio da pintura holandesa e mundial.

Bosch era já para Gabriel Garcia uma referência em versão maravilhosa e lúdica para consumo do imaginário contemporâneo. Fantasias de toda uma civilização de que se tornou intérprete, sem rumo e sem sentido, a não ser a perplexidade de um movimento que ignora um centro, a fonte de toda a energia, o núcleo solar da Vida.

Na fabulosa migração de símbolos e de imagens que toda a grande pintura é, o artista retoma com esta exposição um motivo emblemático de Bosch e um motivo simbólico universal, o ovo, que à distância de mais de cinco séculos faz a relação entre a pintura flamenga da transição para o Renascimento e o imaginário contemporâneo. Símbolo por excelência da criação, o ovo surge em famosos quadros do artista holandês como “A Tentação de Santo Antão” ou o “Juízo Final” em cenários caóticos e dramáticos, associados à coletiva catarse de fantasmas e medos ancestrais e ao mesmo tempo contemporâneos do autor, uma visão crítica da realidade que não exclui a celebração das pulsões da vida, numa única e magistral totalização só antes atingida na poesia de Dante.

Um elo entre a história e o mito, a realidade e o arquétipo, o visível e o invisível, uma realidade física e uma realidade metafísica, está bem patente em toda a obra de Bosch e em particular no tríptico “Visões do Além”. Sob o signo do Paraíso num quadro que poderia ser o ícone da história da arte do Ocidente, “O Jardim das Delícias” e também no “Carro de Feno” ou no “Juízo Final”. O paraíso adquire aí o valor de uma metáfora fundadora da civilização, sua chave, seu começo e seu termo remetendo ainda para o início.

Tal como Dante, Bosch atingiu um cume da arte da sua época transmitindo uma visionária interpretação não apenas do seu tempo, mas de toda a história da humanidade cuja crueldade e absurdo denuncia em imagens de uma avassaladora atualidade e também de uma acutilante ironia e de uma secreta ternura. A “Nave dos Loucos”, um título de grande fortuna no século XX (romance de Katherine Anne Porter, filme de Stanley Kramer) é o navio que transporta toda a condição humana desde tempos imemoriais, de destino incerto. Um destino que hoje ganha na pintura do jovem Gabriel Garcia o sentido novo de uma aventura envolvendo uma contemporaneidade de que todos somos personagens e testemunhas impotentes dos mesmos desastres a que a pintura de Bosch deu intemporal expressão.

Gabriel Garcia já nos habituara nas suas exposições anteriores, em particular na sua notável “Walkthrough a Story” ao extraordinário fôlego do seu caudal de imagens e à mestria de um talento capaz de fazer a ponte entre o maravilhoso das histórias de fadas e dos contos infantis e os mitos e as realidades dramáticas de toda uma civilização cuja história nos conta desde os gigantes da Ilha da Páscoa até às terríveis ameaças da era tecnológica. O seu diálogo com Bosch, antepassado do Surrealismo, é hoje assumido com especial brilho, transportando para a atualidade as suas imagens sem as mimetizar, mas transfigurando-as com grande originalidade nas criaturas do seu próprio universo em cenários da sua invenção (Imagens de Antão), para nos oferecer uma visão da contemporaneidade, ao mesmo tempo rigorosa e visionária e alimentada pela arquetipal mensagem dos símbolos, igualmente presente na obra do seu antepassado mais velho.

Com que divertida e lisonjeada ternura Bosch assistiria hoje a esta espantosa viagem que um dos símbolos da sua pintura realizou através dos séculos para chegar no navio do tempo e da irrisão humana a este universo (“Epopeia do Ovo”) de um jovem artista que nos espanta pela sua ousadia e perspicácia. Um universo onde lado a lado convivem imagens separadas por vários séculos, como se essa distância não fosse mais do que o natural fermento de um novo “Jardim das Delícias” que esta pintura não anuncia aliás, mas cuja ausência parece notar (“Um Jardim sem Delícias” e se converte no emblema de uma melancolia e de uma desesperança que afinal caracterizam o nosso tempo.

“A Epifania do Ovo” de Gabriel Garcia evoca na forma do “ovo-árvore” esta célebre obra de Bosch, e situa-nos no centro de uma visão apocalíptica da civilização, simbolicamente em queda na figura da torre que se desmorona, entre o nascimento e a morte (simbolizados justamente pelo ovo e pelo túmulo) separados pela figura, que poderia ser salvífica, de um jovem personagem andrógino.

A criança representada nos quadros “A Epopeia do Ovo” e “O Sermão”, ou o adolescente, são aliás os índices de uma mediação possível entre o Caos contemporâneo e as raízes míticas do conhecimento perdidas na infância da humanidade ou na nossa infância. Criança solitária, de olhar perdido, vazio ou extático (em “O Rapaz Árvore” ou “Um Olhar com Cruz às Costas”) mas onde reside afinal essa esquecida comunicação com o mundo onírico e maravilhoso de que ela é ainda a única guardiã. Crianças ou adolescentes em jogos de magia e prestidigitação (“Entre os Prestidigitadores”).

É ainda o jovem, mediador de mundos e transmissor de um conhecimento antigo, a personagem central do quadro de Gabriel Garcia “Os Peixes também têm boca” num cenário que recorda esta imagem de Bosch (“Jardim das Delícias”, “Tentação de Santo Antão”) unindo o mundo terrestre e o mundo aquático, possível metáfora da relação entre consciente e inconsciente na origem de toda a arte, e desta também. Mas o peixe não é aqui o emblema do nascimento, da revelação, da vida e da fecundidade com um sentido espiritual, pólo essencial do símbolo, mas conota, tal como na pintura de Bosch, o mundo da indistinção, da indiferenciação e da dispersão bem patentes no olhar sombrio da personagem, bem como na hipnótica e assustadora presença dos seus companheiros do reino animal.

Na fantástica migração de formas e de símbolos a que temos vindo a fazer alusão, mantém-se o sentido errático da viagem, uma epopeia onde as personagens mudaram de visual, conservando a incapacidade ou a inapetência para viverem sem reservas a plenitude da condição humana, vocacionada para a exaltação das mágicas forças da vida e do amor, ainda assim invocadas sublime e magnificamente na obra de Bosch.

Na ousadia do seu extraordinário diálogo cumprido com a obra de Bosch, Gabriel Garcia conserva o essencial do conteúdo dos símbolos, sobretudo o do ovo que dá o título a esta mostra, mas com um olhar bem contemporâneo que retira a mensagem salvífica que lhes pertence e os justifica. No extraordinário quadro “O Purgatório” que retoma o corvo, emblemático na pintura de um mestre da figuração narrativa internacional: Velickovic, o ovo quebrado e vazio aponta o inverso do sentido cosmogónico deste símbolo, tal como o ambiente de imagens noturnas e a labiríntica dispersão sugerida pelo novelo negro que uma das personagens desdobra, Parca (em figura significativamente masculina) de um destino mortal que se adivinha e se avizinha.

Arquiteturas frias e metálicas, uma terra soturna e meio calcinada, uma sugestão bélica (nas figuras dos soldados de insólitos capacetes), tudo nos remete para um imaginário apocalíptico onde paira uma vaga ameaça nuclear. E em destaque uma vez mais a figura de um jovem ou de um anjo sem asas, em pura contemplação ou em silenciosa oração apelando talvez às ausentes forças da Vida.

Jogando com as miniaturizações e as inversões de escala tão características do imaginário e do seu trabalho, Gabriel Garcia situa verdadeiramente no universo da infância e da adolescência (“Os Prestidigitadores”), uma componente lúdica e instintiva, mais evidentes nestas fases da existência humana, capaz de negar a melancolia contemporânea e de deter a fatal marcha para o vazio e o absurdo sugerida na sua pintura, onde não deixa de nos perturbar a ausência de uma figura verdadeiramente feminina que poderia representar o caminho salvífico dos símbolos, inspirador da imagem do Éden, na obra de Bosch.

Anima, pólo feminino e alquímico de uma transmutação e de uma transfiguração de sentido espiritual que poderiam resgatar a matéria do seu peso e das suas trevas, tal como nos ocorre pensar a propósito da obra póstuma de Duchamp, aquela cujo sentido até hoje não foi decifrado. A mulher no drama da sua negação e violentação em Duchamp e na sua ausência, na pintura de Gabriel Garcia, retrato soberbo de um momento, de uma etapa da nossa vivência contemporânea, onde se situa e nos situamos, apesar de tudo na expectativa de um nascimento ou de um renascimento sempre anunciados pelo ovo.

Por aí

Texto de Miguel Matos 2010

… À semelhança de cada vez menos artistas, Gabriel Garcia aposta a sua pintura na narratividade, baseada na figuração e na representação. Fá-lo, dentro de uma técnica de grande tradição e história, no contexto de sonhos que se confundem com a realidade. As suas pinturas recentes pegam no contexto social e psicológico actual e transportam os seus elementos para uma terra incerta, plantada na linha que divide a realidade da fantasia.

O trabalho de Gabriel Garcia aproxima-se esteticamente do surrealismo aqui e além, mas afasta-se gradualmente de tal movimento ao nível ideológico. Não é uma pintura só de sonhos nem é uma arte politizada. No entanto, o pintor não se coíbe de deixar um comentário implícito e insinuado sobre a mentalidade portuguesa e as idiossincrasias de quem vive há séculos a construir castelos de areia. Assim, os contos que Gabriel nos apresenta contêm personagens e paisagens que não identificamos, mas que têm connosco, os portugueses, uma coisa em comum: um sentimento de caminho incerto, errante. Um quotidiano a olhar para aquilo que não se tem nem se é. Talvez daí a presença da saudade, uma visão da vida afastada do pragmatismo e uma passividade que ainda se revela na expectativa de um mítico D. Sebastião como o messias que nos virá salvar.

Há nestas pinturas e desenhos um sentimento de vazio, ainda parente da tão portuguesa saudade que, segundo António José Saraiva é “um estar em dois tempos e em dois sítios ao mesmo tempo”[1], um sentimento de passividade, uma recusa em aceitar o passado como pretérito e, por outro lado, uma vivência alheada no presente. Portugal ainda é um ilhéu. Vive isolado e fala para dentro. As mulheres são Marias como a santa e os homens andam devagar como numa procissão.

Estas personagens, em paisagens de ficção, habitam edifícios feitos de ar. Buscam não se sabe o quê e vão não se sabe onde. Estão “por aí”, vivem em “lugares indeterminados, trajectos aleatórios, sem direcção nem fronteiras, mas bem precisos para os portugueses”, como escreveu José Gil[2]. O “por aí” de que fala este filósofo é esse “território de deambulação” – física e mental – ao mesmo tempo livre e enclausurado. Em ruínas, os castelos no ar dentro dos quais vivemos têm como diáfanos alicerces uma memória desfigurada da história. Talvez pela memória curta, a paisagem perdeu os referentes e misturou-se com as construções mentais. São como paisagens psicológicas, aquelas que servem de fundo às pinturas desta série. Talvez seja a paisagem a que Eric Corne se referia quando escreveu acerca da presença desta na arte contemporânea: “é antes a perturbação da paisagem, a sua erosão e a sua moldagem pela actividade humana (…)”[3]. Neste cenário natural em que se movem personagens e se desfazem casas e memórias, há um elemento expressionista, adequado a esta sensação de degradação. A tinta escorre sobre a tela, como que em metáfora da decadência que as imagens sugerem. Exemplo disto é a tela desabitada em que a personagem é uma casa, também ela vazia e que ostenta em frente a placa com o sinal “Vende-se”. No entanto, a paleta usada por Gabriel denota uma atitude de incontrolável positivismo de quem está à espera de ver o futuro chegar.

 

  • Como estás?
  • Vai-se andando
  • Por onde vais?
  • Por aí…

 

[1]    SARAIVA, António José, A Cultura em Portugal – Teoria e História, Livro I, 2ª edição, Bertrand Editora, Lisboa, 1985

[2]    GIL, José, Portugal, Hoje – O Medo de Existir, Relógio D’Água, Lisboa, 2004

[3]    CORNE, Eric, Paisagens Oblíquas, Museu Colecção Berardo, Lisboa, 2009